sábado, 10 de noviembre de 2018



Capítulo 4


Os capítulos 4 a 8 compõem o bloco concernente à parte intelectual da alma. É uma peça importante daquilo que seria uma teoria do intelecto de Aristóteles, a qual inclui não muitas outras passagens do corpus, das quais as principais são; Ética a Nicômaco VI, sobre as virtudes intelectuais; De Generatione Animalium II, 3, sobre o nous e embriões; Metafísica I, 1, e Segundos Analíticos II, 19, sobre a relação entre intelecto, memória e percepção sensível e, por fim, Metafísica XII sobre o primeiro motor imóvel. O tratamento que Aristóteles dispensa ao intelecto no De Anima revela certas anomalias ante o programa de investigação que estava em andamento. As capacidades vinham sendo examinadas das mais às menos gerais: primeiro a nutrição e a reprodução, que pertence a todos os animais. Era então de se esperar que a capacidade de locomoção, compartilhada pela grande maioria dos animais, fosse abordada antes que o intelecto, subsistente em poucos. A mudança de ordem talvez tenha a ver com o fato de existir alguma vantagem em tratar, lado a lado, as duas capacidades de discriminar objetos, principalmente em vista do problema que guia toda a discussão - saber qual a natureza da distinção, se é que há alguma, entre percepção sensível e intelecto. A segunda anomalia desse bloco é não começar pelo exame do objeto correlato - os inteligíveis - como ele tinha recomendado proceder [415a20-2]. E a razão talvez seja que é mais difícil compreender, nesse caso, o objeto que a atividade propriamente dita e a parte da alma responsável por ela.


O tema do capítulo é o intelecto passivo [nous pathêtikos], como dirá Aristóteles no próximo capítulo [430a24], que foi exaustivamente estudado pelos comentadores antigos. O capítulo divide-se em três partes principais. Aristóteles, primeiro, levanta duas questões a serem respondidas: uma, quanto à separação do intelecto, e outra, sobre como ocorre o pensar. Apresenta, a seguir, três argumentos para provar que o intelecto é separado, vale dizer, distinto da percepção sensível e desprovido de um órgão sensorial. Em seguida, distingue a atividade intelectual de discriminar a forma de um composta daquela de discriminar a sua, digamos, essência. Por fim, Aristóteles apresenta, e soluciona, dois impasses decorrentes de sua exposição.





429a10. O verbo conhecer [ginôskei] designa o aspecto mais teórico da atividade intelectual, e o verbo entender [phronei], seu aspecto mais prático, ambos voltados para objetos. Mas cabe sublinhar que conhecer não é uma atividade exclusiva do intelecto, e o termo tem ao menos uma ocorrência em que está ligado à atividade dos sentidos [GA 731a33]. Nesta passagem, é justamente a adição de phronei que distingue, ao que parece, o intelecto do sentido [427b6 ss.].


A primeira questão levantada - se o intelecto é uma parte efetivamente separada ou se é separável apenas em abstração - deve ser interpretada no sentido de saber se o intelecto é ou não uma das partes separada das demais capacidades da alma. Tendo apontado que as capacidades da alma são inseparáveis do corpo, Aristóteles frequentemente faz reservas quanto ao intelecto. Em 403a3-10, por exemplo, aponta que, na maioria dos casos, as ações e afecções da alma não ocorrem independentemente do corpo, embora o pensar pareça peculiar só à alma; caso nem mesmo isso ocorra sem imagens mentais, então o pensamento não seria independente do corpo. Em 423b24-7, ele observa que o intelecto e a potência teórica da alma parecem ser de um outro gênero, e só o intelecto admite, tal como o eterno, separar-se do corruptível.


Aristóteles, em suma, retoma a questão com que se ocupou nos capítulos anteriores deste terceiro livro, a qual consiste em saber se o intelecto é ou não uma parte efetivamente separada da percepção sensível ou se elas são apenas distintas em abstração.


429a13. Nesta passagem, Aristóteles apresenta dois argumentos para mostrar que o intelecto é separável, ou seja, uma parte distinta da percepção sensível. Os dois processos (pensar e perceber) - que, de acordo com 427b27, não são idênticos - serão assumidos, contudo, como análogos. Aristóteles sugere que a atividade do intelecto consiste em captar as formas inteligíveis, da mesma maneira que a percepção sensível consiste em receber as formas sensíveis sem a matéria. Com base nisso, sustenta que o intelecto deve ser apathes - impassível, isto é, não afetado - para não alterar as formas que apreende. O ponto foi apresentado por Platão em Timeu 50a-51a. E, tanto em um caso como em outro, a expressão paskhein ti significa não uma destruição pelo oposto (como no caso do calor, que, sendo afetado pelo frio, é destruído, dando lugar ao contrário), mas seguramente a passagem da potência à atividade.


A analogia entre sentido e intelecto, contudo, deve ser levada com cautela: o intelecto, como veremos, não tem órgão físico; o objeto inteligível, de certa maneira, está na própria alma, e por isso a análise em paralelo do intelecto e dos sentidos é imperfeita. A expressão sofrer algo é ambígua, e sofre algo pela sensibilidade é diferente de sofrer algo para o pensamento. De fato, Aristóteles é mais lacônico do que se esperaria no detalhamento das diferenças entre os dois.


Em outras palavras, nada tendo sofrido e sendo totalmente destituído daqueles objetos que tem de receber, o intelecto também não poderá ser afetado por eles em sua própria natureza, quando os tiver recebido (cf. CH, p. 476). Para que possa ser receptivo da forma, o intelecto deve ser não afetado e impassível. O primeiro argumento [a13-24[ pode ser assim reconstituído:


pensar é como perceber, no sentido de perceber a forma do que é pensado sem a matéria, e de tornar-se, de alguma maneira, semelhante a ela;


se o que pensa já tiver uma forma, não será possível que adquira forma alheia;


não há nada que não se possa pensar;


logo, o que pensa não tem qualquer forma, exceto esta: ser potencial, isto é, capaz de receber formas.


Foram apontados alguns problemas neste raciocínio. A primeira e terceira premissas parecem questionáveis: de que maneira o que pensa se torna semelhante a forma pensada? Aristóteles havia prometido explicar como ocorre a forma pensamento, mas dizer simplesmente que pensar é receber a forma do pensado parece não dar conta do recado. Cf. Charlton, “Aristotle on the Place of Mind in Nature”.





O intelecto precisa ser ainda amigê - sem mistura [a18] -, como disse Anaxágoras. Isto é, não misturado aos próprios objetos de cognição. Alguns intérpretes antigos suplementaram o termo: “o intelecto não é misturado à matéria”. Contudo, “parece mais razoável que Aristóteles primeiro chame atenção para os atributos em que intelecto e sentido concordam, antes de passar às suas não-similaridades” (cf. CH, p. 477). Sendo assim, amigês aproxima-se do significado de apathês, e até a linha a24 - “por isso, é razoável que tampouco ele seja misturado ao corpo” - o que está em jogo é a relação do intelecto com seus objetos. Só a partir deste ponto é que Aristóteles se ocupará da relação entre intelecto e matéria. Aristóteles apresenta agora um segundo argumento para provar que o nous é separável do corpo [a24-9]. Pois, se fosse misturado ao que é corpóreo, o nous seria dotado de alguma qualidade - por exemplo, teria uma certa temperatura - e disporia de um órgão corpóreo específico para o pensamento - e se o cérebro tem algum papel, para Aristóteles, este se liga principalmente à refrigeração do corpo. Msa isso não parece provar que o pensar independa de todo de eventos fisiológicos. Como ele mesmo havia apontado, se o pensamento requer imagens mentais, então nem mesmo ele ocorreria sem o corpo.


Se o intelecto fosse material, não poderia receber simultaneamente a forma do calor e a forma do frio; se fosse imaterial como a sensibilidade, mas dotado como ela de um órgão corporal, o estado desse órgão impediria de receber as formas em sua pureza e mesmo apanhar algumas delas, assim como a constituição física do tato o torna impróprio à percepção de certas temperaturas [...] (cf. CRod, p. 439).


Mas as implicações últimas do argumento talvez tenham sido captadas por Hicks: uma coisa incorporal pode ser dita per acidens misturada ao corpo, e essa extensão imprópria do termo mistura pode ser usada para denotar a união da forma e da matéria na coisa concreta. É nesse sentido que Aristóteles nega ao intelecto mistura com o corpo. Como parte da alma, o intelecto reside no corpo todo e usa-o como seu órgão. Se não exatamente “misturado ao” corpo, o intelecto é, em todos os eventos, dependente do corpo, sem o qual ele não poderia ser suplementado com imagens mentais. Deve ser, portanto, em relação a suas operações que estamos considerando a questão da mistura ou não-mistura com o corpo. A recepção das formas que constitui o pensar deve ocorrer sem a intervenção do corpo (cf. CH, p. 481).





429a29. A linha geral deste terceiro argumento seria a seguinte: um objeto perceptível muito forte atua sobre o órgão de maneira que tende a destruí-lo; se objeto inteligível, seu excesso produziria resultado similar. Mas não é o caso; logo, o intelecto é separável, isto é, existe independentemente do órgão físico.


Em suma, o intelecto deve ser não misturado a nada, já que pensa tudo. E assim, de acordo com Aristóteles, o intelecto é em potência tal como todas as coisas, mas, em ato, absolutamente nenhuma delas. A concepção do intelecto como pura potencialidade, nesse sentido, é uma consequência direta de sua ideia de que é possível pensar todas as coisas. Contudo, há pontos obscuros sobre o status do intelecto: como é possível que ele seja potencialidade de órgão nenhum, isto é, em relação a essa parte da alma, o que significa exatamente o termo noêtikon - intelectivo ou capaz de pensar -, se não é capacidade de um órgão corporal? “O melhor que se pode dizer é que a capacidade ou potencialidade em questão concerne ao homem todo e é dependente das outras faculdades que têm órgãos” (cf. CHa, p. 136).


Tendo apontado nesta primeira diferença - o intelecto não é capacidade de um órgão corporal -, Aristóteles mostra uma diferença em b6-10. Em relação ao intelecto, é preciso distinguir dois graus de potência: o intelecto, por um lado, é uma dynamis ou potência - por exemplo, no sentido em que toda e qualquer criança tem capacidade intelectual de aprender a ler por fazer parte do gênero humano. Mas o intelecto, por outro lado, também é uma potência no sentido de que é uma disposição ou habilidade intelectual adquirida que pode entrar em atividade tão logo o próprio sujeito que dela dispõe decida - por exemplo, como dizemos que tem potência para ler aquele que já foi alfabetizado, embora eventualmente não esteja no pleno exercício da leitura.


Em outras palavras, no caso do intelecto, a potencialidade se dá em duas etapas, as quais correspondem respectivamente a dynamis e hexis. No caso da percepção sensível, por sua vez, os animais já vêm “instruídos” pelo genitor [417a16 ss.]: e não precisamos aprender a ver para dispormos da visão quando quisermos. Porém, sem termos sido instruídos, não temos à nossa disposição, por exemplo, a habilidade de calcular ou ler.


Aristóteles distingue, ainda, potências irracionais - por exemplo, o quente é só capaz de aquecer - de potências racionais - por exemplo, a capacidade do médico de tanto pode curar como adoecer. A percepção sensível é uma potência irracional a medida em que é um capacidade para uma mudança natural em apenas uma direção dada. O intelecto é uma potência racional, pois é uma capacidade para opostos (por exemplo, tanto para o vício como para a virtude: e é por treino e atividade que se elimina a disposição de um deles e se reforça a outra).


A distinção dynamis/hexis/energeia é apresentada em Fis. VIII, 4, em Met. V, 20. A hexis é um substantivo formado a partir de verbo ekhô - ter -, e indica o ato de possuir. Se entre o que produz e o que é produzido encontra-se a produção [poiêsis], da mesma maneira encontra-se, entre o que tem e aquilo que é tido, a hexis ou ação de posse, a qual, por sua vez, é oposta à privação [sterêsis]. “Hexis, em um segundo sentido, é uma certa disposição [diathesis] segundo o qual se está ou bem ou mal disposto” [Met. 1022b10-4]. A saúde e a virtude são uma certa hexis.





429b10. Nesta segunda parte, está em jogo a distinção entre a intelecção da forma - que é levada a cabo pelos sentidos e pelo intelecto - e a intelecção, digamos, da essência e, para usar a locução empregada pelo próprio Aristóteles, “do que é ser o que é”, que é uma realização exclusivamente intelectual. Aristóteles lança mão da distinção entre a forma realizada na matéria e a essência, para mostrar que o intelecto é uma parte da alma separada das demais.


Alguns comentadores modernos tomam essa distinção como entre a coisa concreta - apreendida pelos sentidos - e a forma, essência ou quididade. Já que conhecemos a carne e coisas semelhantes pelo sentida e as formas ou quididades pelo intelecto, Aristóteles parece discutir a seguinte questão: são os sentidos e o intelecto diferentes ou é a mesma faculdade em atitudes diferentes? A diferença entre as duas faculdades foi assumida o tempo todo (e.g. 413b24 ss., 414b16ss.) com base no facto de que os animais possuem sensação, mas não intelecto. É possível que Aristóteles esteja retomando a questão, deixada inconclusa em 429a1l de saber qual é o tipo ou grau de separação entre o intelecto e o resto das faculdades. Poderia parecer que o intelecto é, depois de tudo, apenas os sentidos em uma diferente relação, pois algumas considerações favorecem tal visão. Ao longo do tratado, Aristóteles esteve sempre hostil à aceitação de distintas partes da alma e onde ele aceita isso como uma hipótese de trabalho é sobre protesto, como , por exemplo, em 432a22 ss. A unidade essencial da alma é enfatizada sempre [...]. Além disso, em outros textos, ele aproxima sentido e pensamento [P. Anal. 100a7, Met. 1087a19, EN 1143a35 ss.], cf. CH, p. 487.


Rodier tentou uma explicação diferente. Ele assume que carne é um termo ambíguo, pois se refere tanto (a) à carne particular, que é conhecida pelos sentidos, como (b) à carne universal, que é conhecida pelo intelecto. No caso (a), a carne e sua quididade são julgadas por duas faculdades diferentes; no caso (b) a carne e sua quididade são discernidas pela mesma faculdade, a saber, o intelecto em duas atitudes distintas. Cf. CRod, p. 448.


O fato é que nem os comentadores antigos, nem os modernos, conseguiram dar uma explicação satisfatória para esta passagem. A mais geralmente seguida é a de Themistius: para capturar as formas separadas, o intelecto se basta; para capturar as formas com a sua matéria, o intelecto precisa de percepção sensível. Quando o intelecto conhece as formas em si mesma, ele é simples como a linha reta, e quando ele captura as coisas - matéria e forma -, ele é composto tal como a linha quebrada, Cf. CRod, p. 445.


O mais correto, por conseguinte, será dizer que é a mesma faculdade que captura as formas puras e as formas realizadas na matéria, mas que ela não se comporta igualmente nos dois casos.


Na minha maneira de ver, a passagem é mais compreensível seguindo o sentido que lhe deram os antigos. A grandeza, a água e a carne - bem como o adunco - não são, parece-me, apreendidas exclusivamente pelos sentidos. A teoria aristotélica da percepção sensível é clara neste ponto: os sentidos recebem as qualidades que lhe são correlatas, como a cor, o som, a temperatura etc.; mas que algo é carne, grandeza, água, isto apenas acidentalmente se apreende pelos sentidos, e é o intelecto, por meio deles, que captura tais noções. A forma será, então, algo apreendido pela cooperação entre sentidos e intelecto. A forma, por sua vez, inclui certas características gerais, mas não é idêntica à essência (a forma do homem realizada em uma matéria determinada inclui, por exemplo, um certo sexo, que não é uma característica acidental da mesma natureza que ser um músico ou ser filho de beltrano). A essência do homem, por outra lado, exclui essa característica formal e é ainda mais abstrata. Ela é uma noção morfológica e compreende somente aquela características relevantes a uma explicação teleológica [Met. 1058b2; GA 778a29, b19; PA 640a33-b4].





429b18. A mesma distinção feita no parágrafo anterior - entre intelecção da forma e intelecção da essência - é agora aplicada às entidades matemática, que parecem puras abstrações, mas são tal como o adunco e não têm existência separada. Porém, há uma diferença entre a matéria perceptível do adunco e a matéria inteligível da reta [Met. 1036a4-12]. A reta pode ser analisada em dois aspectos logicamente distintos: o material, em que é algo que existe como comprimento e contínuo (no espaço), e o formal, em que é uma dualidade e aquilo que se estende de um ponto a outro. Sobre a não-existência independente das entidades matemáticas, ver ainda Metafísica VI, 1.


Nessas condições, é claro que o intelecto lida com diversos graus de separação entre forma e matéria, e este parece ser o sentido da última frase.


429b22. São apresentados os dois problemas que ainda pedem solução: (1) como o intelecto pode pensar, sendo simples e não afetado, como pretende Anaxágoras, se o pensar é justamente uma maneira de afetação pelo inteligível? (2) será o próprio intelecto um objeto inteligível a si mesmo? Aqui está em jogo o mesmo problema colocado anteriormente para a sensibilidade no que diz respeito à percepção do próprio ato de percepção sensível. Mas isso parece apresentar um dilema. Se o intelecto pensa a si mesmo, é por ser inteligível. Ora, se tudo o que é inteligível é idêntico em forma, isto é, se a inteligibilidade do intelecto é igual à de outra inteligível qualquer, então temos duas possibilidades: ou os outros inteligíveis também seriam intelectos que podem pensar a si mesmos, ou haveria algo misturado ao intelecto, diferenciando-o dos demais inteligíveis. Neste caso, contudo, seria inadequado pretender que o intelecto é algo simples e sem mistura.





429b29. A passagem é excessivamente sucinta e os comentadores sentiram necessidade de suplementá-la de alguma maneira. Todavia, o sentido deste parágrafo final é relativamente claro, e Aristóteles pretende apresentar possíveis soluções para os dois problemas levantados nos parágrafo anterior. Para lidar com o primeiro, ele repete, aproximadamente, o mesmo esquema que empregou para a percepção sensível: o intelecto antes de pensar é somente em potência os inteligíveis e nada em atualidade.


Cabe notar que a teoria aristotélica do intelecto que está sendo construída é radicalmente distinta da noção platônica de reminiscência. Segundo Platão, os verdadeiros objetos do conhecimento são formas que não podem ser capturadas pela percepção sensível. Sem dúvida, a percepção sensível oferece a oportunidade e o estímulo para que a alma tenha uma recordação das formas que contemplou antes de encarnar. O papel da sensação na aquisição do conhecimento é apenas o de ajudar o intelecto a resgatar as formas exatas que a alma traz em si e que constituem os princípios da ordem do mundo. Para Aristóteles, por sua vez, o intelecto deve ser apto a receber inscrições, tal como uma tabuleta onde nada está escrito em ato e tudo potencialmente poderá ver a ser escrito. Esta é a força, a meu ver, da imagem escolhida por ele para descrever a potencialidade do intelecto. Mas é preciso cautela na analogia: a tabuleta não representa literalmente o intelecto, na medida em que ela é algo efetivamente existente (e o intelecto, por sua vez, é mera potencialidade), o que ambos têm em comum é a aptidão para receber inscrições.


O segundo dilema - que na verdade envolve a distinção entre o que é ser para o intelecto e o que é ser para o inteligível - dissolve-se na medida em que não é verdadeiro afirmar que o inteligível é uno em espécie. As coisas materiais, embora sejam inteligíveis, tanto quanto o intelecto, só são inteligíveis em potência, e não são justamente por isso intelectos. Pois não é com inteligíveis em potência, mas com inteligíveis em atualidade, que o intelecto é idêntico no processo de pensar. O inteligível, referido nesta passagem como o que é independente de matéria, é aquilo que no próximo capítulo será examinado como adeareton; em relação a ele, Aristóteles dirá que não cabe o falso ou verdadeiro, mas algo como captar ou não captar, ocorrer opressão ou não ocorrer - como é o caso da percepção do objeto sensível próprio a cada sentido. Ele lança, por fim, um novo item em sua pauta: é preciso investigar a razão de o intelecto não estar o tempo todo pensando.


Para uma interpretação arrojada que subverte a maneira tradicional de aplicar as distinções entre dynamis, hexis e energeia à parte intelectual da alma - isto é, [a] a potencialidade intelectual do gênero humano, [b] aquela de um indivíduo que já dispõe do conhecimento da gramática e [c] a atividade de pensar propriamente dita -, ver Zingano, Razão e sensação em Aristóteles. Sua (sedutora) estratégia, em poucas palavras, consiste em inverter, de certa maneira os aspectos [b] e [c]: pensar será, então, primeiramente a atividade de produzir inteligíveis e, secundariamente, dispor e ter em potência os inteligíveis já pensados. Ela, por um lado, resolveria (a favor do estagirita) uma querela (por demais abrangente) que se arrastou, sobretudo entre os franceses, a respeito da avaliação do avaliação do esforço de Aristóteles de substituir o idealismo platônico por uma teoria do intelecto. Além disso, acentua a distinção entre a percepção sensível e o pensamento - buscada, sem dúvida, por Aristóteles - e emprega um surpreendente método contrastivo (apresentado em Tópicos) que permite comparações dentro de um mesmo gênero, e que estaria em jogo também em De Anima III, 4-5 (já que tanto uma como a outra são partes da alma do gênero discriminativo). A interpretação, contudo, requer alterações discutíveis no estabelecimento do texto e o recurso não menos polêmica a uma hipótese de cunho geneticista.





Capítulo 5





Este é o célebre capítulo em que Aristóteles distingue o aspecto passivo do intelecto, tal como foi exposto no capítulo anterior, do aspecto ativo, para o qual a hermenêutica acadêmica criou a expressão nous poiêtikos. Vale observar que o próprio Aristóteles não usa o termo consagrado pelos intérpretes, de maneira que é recomendável alguma cautela para não cindir a unidade do intelecto mais do que o permitido por essa distinção de caráter metafísico.


Aristóteles, no capítulo anterior, sustentou as seguintes teses, que agora são explicitamente atribuídas ao nous pathêtikos [430a24]: (a) ele é inteiramente não afetado e não misturado a seus objetos, e por isso pode pensar tudo; (b) seu objeto (o inteligível) é a forma-substância, que ou se encontra separada em ato, ou esetá misturada aos objetos sensíveis compostos; e © o intelecto em atividade é idêntico a seu objeto em atividade, além de (d) desprovido de um órgão corporal específico. Tudo isso sugere que, nesta modalidade de recepção do objeto, a mente se torna inteiramente conformada ao que está sendo conhecido. Neste capítulo, por sua vez, o aspecto do nous que pode assim se tornar todo e qualquer inteligível é distinguido daquele que pode produzi-los (similar a uma arte [a7]): ele primeiro é descrito como uma hexis (similar à luz [a15]) e, depois, como uma energeia [a18].


O texto do capítulo, segundo Ross, pode ter sofrido perda de partes importantes, embora seu estado de conservação não seja tão ruim quanto o do capítulo 6. Sua concisão é quase enervante, Aristóteles é mais alusivo do que de costume, como se tivesse escrito às pressas - o que seguramente não deve ser o caso. Os comentadores insistem demais, talvez por esse motivo, na estreita conexão dessa passagem do De Anima com a Metafísica XII (livro lambda), cap. 6 e 9. Para uma breve exposição das interpretações dos comentadores antigos sobre o nous poietikos, ver Brentano, “Nous poiêtikos: survey of earlier interpretations”.





430a10.


Capítulo 4


Os capítulos 4 a 8 compõem o bloco concernente à parte intelectual da alma. É uma peça importante daquilo que seria uma teoria do intelecto de Aristóteles, a qual inclui não muitas outras passagens do corpus, das quais as principais são; Ética a Nicômaco VI, sobre as virtudes intelectuais; De Generatione Animalium II, 3, sobre o nous e embriões; Metafísica I, 1, e Segundos Analíticos II, 19, sobre a relação entre intelecto, memória e percepção sensível e, por fim, Metafísica XII sobre o primeiro motor imóvel. O tratamento que Aristóteles dispensa ao intelecto no De Anima revela certas anomalias ante o programa de investigação que estava em andamento. As capacidades vinham sendo examinadas das mais às menos gerais: primeiro a nutrição e a reprodução, que pertence a todos os animais. Era então de se esperar que a capacidade de locomoção, compartilhada pela grande maioria dos animais, fosse abordada antes que o intelecto, subsistente em poucos. A mudança de ordem talvez tenha a ver com o fato de existir alguma vantagem em tratar, lado a lado, as duas capacidades de discriminar objetos, principalmente em vista do problema que guia toda a discussão - saber qual a natureza da distinção, se é que há alguma, entre percepção sensível e intelecto. A segunda anomalia desse bloco é não começar pelo exame do objeto correlato - os inteligíveis - como ele tinha recomendado proceder [415a20-2]. E a razão talvez seja que é mais difícil compreender, nesse caso, o objeto que a atividade propriamente dita e a parte da alma responsável por ela.


O tema do capítulo é o intelecto passivo [nous pathêtikos], como dirá Aristóteles no próximo capítulo [430a24], que foi exaustivamente estudado pelos comentadores antigos. O capítulo divide-se em três partes principais. Aristóteles, primeiro, levanta duas questões a serem respondidas: uma, quanto à separação do intelecto, e outra, sobre como ocorre o pensar. Apresenta, a seguir, três argumentos para provar que o intelecto é separado, vale dizer, distinto da percepção sensível e desprovido de um órgão sensorial. Em seguida, distingue a atividade intelectual de discriminar a forma de um composta daquela de discriminar a sua, digamos, essência. Por fim, Aristóteles apresenta, e soluciona, dois impasses decorrentes de sua exposição.





429a10. O verbo conhecer [ginôskei] designa o aspecto mais teórico da atividade intelectual, e o verbo entender [phronei], seu aspecto mais prático, ambos voltados para objetos. Mas cabe sublinhar que conhecer não é uma atividade exclusiva do intelecto, e o termo tem ao menos uma ocorrência em que está ligado à atividade dos sentidos [GA 731a33]. Nesta passagem, é justamente a adição de phronei que distingue, ao que parece, o intelecto do sentido [427b6 ss.].


A primeira questão levantada - se o intelecto é uma parte efetivamente separada ou se é separável apenas em abstração - deve ser interpretada no sentido de saber se o intelecto é ou não uma das partes separada das demais capacidades da alma. Tendo apontado que as capacidades da alma são inseparáveis do corpo, Aristóteles frequentemente faz reservas quanto ao intelecto. Em 403a3-10, por exemplo, aponta que, na maioria dos casos, as ações e afecções da alma não ocorrem independentemente do corpo, embora o pensar pareça peculiar só à alma; caso nem mesmo isso ocorra sem imagens mentais, então o pensamento não seria independente do corpo. Em 423b24-7, ele observa que o intelecto e a potência teórica da alma parecem ser de um outro gênero, e só o intelecto admite, tal como o eterno, separar-se do corruptível.


Aristóteles, em suma, retoma a questão com que se ocupou nos capítulos anteriores deste terceiro livro, a qual consiste em saber se o intelecto é ou não uma parte efetivamente separada da percepção sensível ou se elas são apenas distintas em abstração.


429a13. Nesta passagem, Aristóteles apresenta dois argumentos para mostrar que o intelecto é separável, ou seja, uma parte distinta da percepção sensível. Os dois processos (pensar e perceber) - que, de acordo com 427b27, não são idênticos - serão assumidos, contudo, como análogos. Aristóteles sugere que a atividade do intelecto consiste em captar as formas inteligíveis, da mesma maneira que a percepção sensível consiste em receber as formas sensíveis sem a matéria. Com base nisso, sustenta que o intelecto deve ser apathes - impassível, isto é, não afetado - para não alterar as formas que apreende. O ponto foi apresentado por Platão em Timeu 50a-51a. E, tanto em um caso como em outro, a expressão paskhein ti significa não uma destruição pelo oposto (como no caso do calor, que, sendo afetado pelo frio, é destruído, dando lugar ao contrário), mas seguramente a passagem da potência à atividade.


A analogia entre sentido e intelecto, contudo, deve ser levada com cautela: o intelecto, como veremos, não tem órgão físico; o objeto inteligível, de certa maneira, está na própria alma, e por isso a análise em paralelo do intelecto e dos sentidos é imperfeita. A expressão sofrer algo é ambígua, e sofre algo pela sensibilidade é diferente de sofrer algo para o pensamento. De fato, Aristóteles é mais lacônico do que se esperaria no detalhamento das diferenças entre os dois.


Em outras palavras, nada tendo sofrido e sendo totalmente destituído daqueles objetos que tem de receber, o intelecto também não poderá ser afetado por eles em sua própria natureza, quando os tiver recebido (cf. CH, p. 476). Para que possa ser receptivo da forma, o intelecto deve ser não afetado e impassível. O primeiro argumento [a13-24[ pode ser assim reconstituído:


pensar é como perceber, no sentido de perceber a forma do que é pensado sem a matéria, e de tornar-se, de alguma maneira, semelhante a ela;


se o que pensa já tiver uma forma, não será possível que adquira forma alheia;


não há nada que não se possa pensar;


logo, o que pensa não tem qualquer forma, exceto esta: ser potencial, isto é, capaz de receber formas.


Foram apontados alguns problemas neste raciocínio. A primeira e terceira premissas parecem questionáveis: de que maneira o que pensa se torna semelhante a forma pensada? Aristóteles havia prometido explicar como ocorre a forma pensamento, mas dizer simplesmente que pensar é receber a forma do pensado parece não dar conta do recado. Cf. Charlton, “Aristotle on the Place of Mind in Nature”.





O intelecto precisa ser ainda amigê - sem mistura [a18] -, como disse Anaxágoras. Isto é, não misturado aos próprios objetos de cognição. Alguns intérpretes antigos suplementaram o termo: “o intelecto não é misturado à matéria”. Contudo, “parece mais razoável que Aristóteles primeiro chame atenção para os atributos em que intelecto e sentido concordam, antes de passar às suas não-similaridades” (cf. CH, p. 477). Sendo assim, amigês aproxima-se do significado de apathês, e até a linha a24 - “por isso, é razoável que tampouco ele seja misturado ao corpo” - o que está em jogo é a relação do intelecto com seus objetos. Só a partir deste ponto é que Aristóteles se ocupará da relação entre intelecto e matéria. Aristóteles apresenta agora um segundo argumento para provar que o nous é separável do corpo [a24-9]. Pois, se fosse misturado ao que é corpóreo, o nous seria dotado de alguma qualidade - por exemplo, teria uma certa temperatura - e disporia de um órgão corpóreo específico para o pensamento - e se o cérebro tem algum papel, para Aristóteles, este se liga principalmente à refrigeração do corpo. Msa isso não parece provar que o pensar independa de todo de eventos fisiológicos. Como ele mesmo havia apontado, se o pensamento requer imagens mentais, então nem mesmo ele ocorreria sem o corpo.


Se o intelecto fosse material, não poderia receber simultaneamente a forma do calor e a forma do frio; se fosse imaterial como a sensibilidade, mas dotado como ela de um órgão corporal, o estado desse órgão impediria de receber as formas em sua pureza e mesmo apanhar algumas delas, assim como a constituição física do tato o torna impróprio à percepção de certas temperaturas [...] (cf. CRod, p. 439).


Mas as implicações últimas do argumento talvez tenham sido captadas por Hicks: uma coisa incorporal pode ser dita per acidens misturada ao corpo, e essa extensão imprópria do termo mistura pode ser usada para denotar a união da forma e da matéria na coisa concreta. É nesse sentido que Aristóteles nega ao intelecto mistura com o corpo. Como parte da alma, o intelecto reside no corpo todo e usa-o como seu órgão. Se não exatamente “misturado ao” corpo, o intelecto é, em todos os eventos, dependente do corpo, sem o qual ele não poderia ser suplementado com imagens mentais. Deve ser, portanto, em relação a suas operações que estamos considerando a questão da mistura ou não-mistura com o corpo. A recepção das formas que constitui o pensar deve ocorrer sem a intervenção do corpo (cf. CH, p. 481).





429a29. A linha geral deste terceiro argumento seria a seguinte: um objeto perceptível muito forte atua sobre o órgão de maneira que tende a destruí-lo; se objeto inteligível, seu excesso produziria resultado similar. Mas não é o caso; logo, o intelecto é separável, isto é, existe independentemente do órgão físico.


Em suma, o intelecto deve ser não misturado a nada, já que pensa tudo. E assim, de acordo com Aristóteles, o intelecto é em potência tal como todas as coisas, mas, em ato, absolutamente nenhuma delas. A concepção do intelecto como pura potencialidade, nesse sentido, é uma consequência direta de sua ideia de que é possível pensar todas as coisas. Contudo, há pontos obscuros sobre o status do intelecto: como é possível que ele seja potencialidade de órgão nenhum, isto é, em relação a essa parte da alma, o que significa exatamente o termo noêtikon - intelectivo ou capaz de pensar -, se não é capacidade de um órgão corporal? “O melhor que se pode dizer é que a capacidade ou potencialidade em questão concerne ao homem todo e é dependente das outras faculdades que têm órgãos” (cf. CHa, p. 136).


Tendo apontado nesta primeira diferença - o intelecto não é capacidade de um órgão corporal -, Aristóteles mostra uma diferença em b6-10. Em relação ao intelecto, é preciso distinguir dois graus de potência: o intelecto, por um lado, é uma dynamis ou potência - por exemplo, no sentido em que toda e qualquer criança tem capacidade intelectual de aprender a ler por fazer parte do gênero humano. Mas o intelecto, por outro lado, também é uma potência no sentido de que é uma disposição ou habilidade intelectual adquirida que pode entrar em atividade tão logo o próprio sujeito que dela dispõe decida - por exemplo, como dizemos que tem potência para ler aquele que já foi alfabetizado, embora eventualmente não esteja no pleno exercício da leitura.


Em outras palavras, no caso do intelecto, a potencialidade se dá em duas etapas, as quais correspondem respectivamente a dynamis e hexis. No caso da percepção sensível, por sua vez, os animais já vêm “instruídos” pelo genitor [417a16 ss.]: e não precisamos aprender a ver para dispormos da visão quando quisermos. Porém, sem termos sido instruídos, não temos à nossa disposição, por exemplo, a habilidade de calcular ou ler.


Aristóteles distingue, ainda, potências irracionais - por exemplo, o quente é só capaz de aquecer - de potências racionais - por exemplo, a capacidade do médico de tanto pode curar como adoecer. A percepção sensível é uma potência irracional a medida em que é um capacidade para uma mudança natural em apenas uma direção dada. O intelecto é uma potência racional, pois é uma capacidade para opostos (por exemplo, tanto para o vício como para a virtude: e é por treino e atividade que se elimina a disposição de um deles e se reforça a outra).


A distinção dynamis/hexis/energeia é apresentada em Fis. VIII, 4, em Met. V, 20. A hexis é um substantivo formado a partir de verbo ekhô - ter -, e indica o ato de possuir. Se entre o que produz e o que é produzido encontra-se a produção [poiêsis], da mesma maneira encontra-se, entre o que tem e aquilo que é tido, a hexis ou ação de posse, a qual, por sua vez, é oposta à privação [sterêsis]. “Hexis, em um segundo sentido, é uma certa disposição [diathesis] segundo o qual se está ou bem ou mal disposto” [Met. 1022b10-4]. A saúde e a virtude são uma certa hexis.





429b10. Nesta segunda parte, está em jogo a distinção entre a intelecção da forma - que é levada a cabo pelos sentidos e pelo intelecto - e a intelecção, digamos, da essência e, para usar a locução empregada pelo próprio Aristóteles, “do que é ser o que é”, que é uma realização exclusivamente intelectual. Aristóteles lança mão da distinção entre a forma realizada na matéria e a essência, para mostrar que o intelecto é uma parte da alma separada das demais.


Alguns comentadores modernos tomam essa distinção como entre a coisa concreta - apreendida pelos sentidos - e a forma, essência ou quididade. Já que conhecemos a carne e coisas semelhantes pelo sentida e as formas ou quididades pelo intelecto, Aristóteles parece discutir a seguinte questão: são os sentidos e o intelecto diferentes ou é a mesma faculdade em atitudes diferentes? A diferença entre as duas faculdades foi assumida o tempo todo (e.g. 413b24 ss., 414b16ss.) com base no facto de que os animais possuem sensação, mas não intelecto. É possível que Aristóteles esteja retomando a questão, deixada inconclusa em 429a1l de saber qual é o tipo ou grau de separação entre o intelecto e o resto das faculdades. Poderia parecer que o intelecto é, depois de tudo, apenas os sentidos em uma diferente relação, pois algumas considerações favorecem tal visão. Ao longo do tratado, Aristóteles esteve sempre hostil à aceitação de distintas partes da alma e onde ele aceita isso como uma hipótese de trabalho é sobre protesto, como , por exemplo, em 432a22 ss. A unidade essencial da alma é enfatizada sempre [...]. Além disso, em outros textos, ele aproxima sentido e pensamento [P. Anal. 100a7, Met. 1087a19, EN 1143a35 ss.], cf. CH, p. 487.


Rodier tentou uma explicação diferente. Ele assume que carne é um termo ambíguo, pois se refere tanto (a) à carne particular, que é conhecida pelos sentidos, como (b) à carne universal, que é conhecida pelo intelecto. No caso (a), a carne e sua quididade são julgadas por duas faculdades diferentes; no caso (b) a carne e sua quididade são discernidas pela mesma faculdade, a saber, o intelecto em duas atitudes distintas. Cf. CRod, p. 448.


O fato é que nem os comentadores antigos, nem os modernos, conseguiram dar uma explicação satisfatória para esta passagem. A mais geralmente seguida é a de Themistius: para capturar as formas separadas, o intelecto se basta; para capturar as formas com a sua matéria, o intelecto precisa de percepção sensível. Quando o intelecto conhece as formas em si mesma, ele é simples como a linha reta, e quando ele captura as coisas - matéria e forma -, ele é composto tal como a linha quebrada, Cf. CRod, p. 445.


O mais correto, por conseguinte, será dizer que é a mesma faculdade que captura as formas puras e as formas realizadas na matéria, mas que ela não se comporta igualmente nos dois casos.





Na minha maneira de ver, a passagem é mais compreensível seguindo o sentido que lhe deram os antigos. A grandeza, a água e a carne - bem como o adunco - não são, parece-me, apreendidas exclusivamente pelos sentidos. A teoria aristotélica da percepção sensível é clara neste ponto: os sentidos recebem as qualidades que lhe são correlatas, como a cor, o som, a temperatura etc.; mas que algo é carne, grandeza, água, isto apenas acidentalmente se apreende pelos sentidos, e é o intelecto, por meio deles, que captura tais noções. A forma será, então, algo apreendido pela cooperação entre sentidos e intelecto. A forma, por sua vez, inclui certas características gerais, mas não é idêntica à essência (a forma do homem realizada em uma matéria determinada inclui, por exemplo, um certo sexo, que não é uma característica acidental da mesma natureza que ser um músico ou ser filho de beltrano). A essência do homem, por outra lado, exclui essa característica formal e é ainda mais abstrata. Ela é uma noção morfológica e compreende somente aquela características relevantes a uma explicação teleológica [Met. 1058b2; GA 778a29, b19; PA 640a33-b4].